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quinta-feira, 3 de maio de 2012

A CRIAÇÃO ESTÁ NA U.T.I____LÚCIA de FÁTIMA MARQUES PERES

A Criação está UTI



Absorta, observo as gotas minúsculas que vão caindo e escorrendo pela vidraça. Algumas respingam em mim e vão umidecendo meus pensamentos. Estes, me levam pra longe, numa viagem de uma vida inteira...
As imagens que vão surgindo, refrigeram a minha alma, e uma chuva mais intensa continua caindo dentro de mim. A mesma que vai impulsionar o monjolinho, caprichosamente arquitetado e assentado, a beira do riacho de águas cristalinas e tão mágicas. E o toc toc , bate ecoando felicidade pelos ares... Lá está para sempre o menino, mestre da engenhoca, habilidade que herdara de seus ancestrais.
A chuva continua... As águas saem de seus esconderijos. Algumas espreitam timidamente tudo ao redor... O céu não está cinzento, mas também não está azul como nos dias ensolarados...
E as águas passeiam... Escapam e somem pelas veredas... Ressurgem nas manhãs orvalhadas, perfumadas pela essência da terra. As mais apressadas apostam corrida, desafiam as escarpas e os rochedos, deixando pelo caminho notas musicais de todas as cores... Entre arbustos e arvoredos, se aninham nos leitos dos rios, nos lagos e lagoas... A mesma, que vai banhar as crianças candidatos à puberdade. Estas saltam os penhascos sem medo e desvestidas de juízo. Vestindo apenas a adrenalina da meninice feliz. Mergulham fundo, dentro delas mesmas. Para estas, talvez seja a única diversão da semana. A piscina sonhada, lá é generosa oferenda da mãe natureza, que sem cobrança, não apenas as contempla, como também as afaga. As gotas que de seus corpos inocentes escorrem, escoam pelo ralo da terra, e prosseguem numa missão incansável... Missão de idas e vindas, de juntar anos e separar milênios... Missão de regar a criação.
Meus pensamentos vão ficando encharcados... Molhados pela alegria de correr pelos quintais. Enquanto as roupas rodopiam ao vento nos varais, as árvores dançam lambada e as nuvens tentam se esconder do vento. Balançam, balançam e se movimentam freneticamente.
É festa no céu. É festa na terra. A mesma que sustenta os cafezais, os canaviais e tantas outras plantações.
A vida está sendo molhada. Quantas felicidades!
E a chuva cai. Vai molhando o chão batido, o chão pisado pelo gado, os trilhos da linha férrea e a estrada também. Outras, invasoras, vão chegando sem nem mesmo pedir licença. Assustadoras, avançam os quintais ao som dos vendavais. O rio transborda. Os bueiros também.
Tingida por tons escuros, não mais insípida, não mais tão bela.
Toma posse. Traz de tudo um pouco. Deixa lixo, deixa lodo, deixa gravetos e os galhos...
Galhos verdes, galhos secos, galhos molhados de fome e encharcados de tristeza.
O dia chora. As crianças também. Não é dia de brincadeira.
O céu que assiste tudo convida o sol: É dia de mutirão. É preciso insolação.
O trem precisa trafegar nos trilhos de ferro, nos trilhos da vida também.
Partem as águas intrometidas, cuja missão era alagar e também alargar os sentimentos de partilha nos corações caatingueiros.
O entardecer traz o vento. Uma pipa minúscula o convida para brincar. É preciso distrair as crianças.
A natureza levou as águas para algum lugar... Mas qual? Em qual esconderijo estaria?
Em quanto isto, a criança definha... Sonha com a panela cheia, com o horizonte transbordando, com a água escorrendo fria pela testa, pelo relevo humano. Seus olhos choram secamente, estão áridos, querem o colo tranqüilo das águas. Águas do São Francisco, das serras tão longe dali, do outro lado do mundo...
Do outro lado do mundo? No outro lado do mundo...
E as águas que estavam dormindo, acordaram assustadas, com solavancos no berço, sem tempo de reação. O chão treme. A maresia foge. A terra geme. As florestas tombam. As geleiras sucumbem. Os oceanos espasmam em cólicas. O mar vomita fúria, deixando marcas e o gosto do fel. Deixando ainda, mais um sinal de alerta: Depressa, o doce lar está ficando salgado. A Criação está UTI.

Campinas 19/03/2011.
Por Lúcia de Fátima Marques Peres

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